O que eu aprendi com a Micaela (não com o câncer)

Aprendi que, se houver um elefante na sala, trate de apresentá-lo. Então, se houver alguém lendo que não sabe o que está me acontecendo, eu gostaria de apresentar  o “Câncer de mama triplo-negativo”.

Essa foi a realidade da minha esposa Micaela e da minha família nos últimos dois anos e ainda é, após a partida da minha esposa. Não podemos mudar a realidade, temos que resolver como reagir. Não podemos trocar as cartas do jogo, mas podemos mudar a forma como jogar.

Receber a notícia do diagnóstico do câncer não abala só quem porta a doença, mas também amigos e familiares.

Meu nome é Rafael, sou pai da Maria Clara, de 6 anos, e do Francisco, 2 anos, e fui casado com a mulher dos meus sonhos.

O ELEFANTE NA SALA

Câncer de mama triplo-negativo. Esse subtipo de câncer representa cerca de 15% a 20% de todos os casos de câncer de mama no mundo e se destaca por afetar, geralmente, mulheres jovens e ser agressivo.

A denominação “triplo-negativo” refere-se ao fato de que esse tipo de tumor não apresenta nenhum dos três biomarcadores mais empregados na classificação do câncer de mama. São eles: receptor de estrógeno, receptor de progesterona e proteína HER-2.

“Para os cânceres de mama que contam com a presença desses biomarcadores já existem tratamentos específicos e com maior chance de sucesso, mas para o câncer de mama triplo-negativo ainda não”, explica o coordenador de Oncologia Clínica do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, dr. Artur Katz. “Hoje, as pacientes com esse tipo de câncer de mama são tratadas basicamente com quimioterapia e, para alguns casos, radioterapia ou cirurgia”, comenta.

Por que o câncer de mama triplo-negativo é mais agressivo?

Esse tipo de câncer de mama costuma ser mais agressivo porque existe maior chance de retorno da doença depois de um prévio controle, levando à metástase e a uma sobrevida menor do que os outros tipos de câncer.

Contudo, se descoberto mais precocemente, pode ser igualmente curado na maioria dos casos.

Em 2016, segundo estimativas do Ministério da Saúde, o Brasil registrou 57.960 casos novos de câncer de mama. Se 20% forem triplos-negativos, conforme apontam as estimativas internacionais, 11.592 pessoas podem vir a desenvolver esse tipo de tumor no País.

NOSSA VIDA MUDOU DE REPENTE

Nosso segundo filho, Francisco, completaria 10 meses naquele mês. Era dezembro, o Natal se aproximava, ainda estávamos nos adaptando à rotina do segundo filho e planejando como seria o Natal e o Ano Novo com as crianças.

Em algum momento durante a amamentação ou no banho, Micaela sentiu um nódulo ou um caroço no seio esquerdo. Como ela estava amamentando, em um primeiro momento confundimos com algo relacionado à amamentação. Não imaginávamos que seria grave e, até por isso, adiamos a ida ao médico até  que o nódulo ficou aparente, bem visível e começou a doer.

Como estávamos entre o Natal e Ano Novo, não conseguimos consulta com a ginecologista e fomos orientados a ir ao hospital. Micaela fez um ultrassom que não foi conclusivo e, por ainda estar amamentando, não foi possível ter o diagnóstico. Saímos com mais dúvidas e com a orientação de procurar um especialista.

Conseguimos marcar uma consulta logo depois do Ano Novo. A médica que nos atendeu deu início ao exame e, após alguns minutos, ficou com o semblante mais sério. Ficamos em silêncio e ela disse que chamaria uma outra médica para visualizar e ajudar no diagnóstico. Conhecemos a Dra. Sandra, que deu continuidade ao exame e, após alguns minutos descreveu o que havia encontrado e indicou a biópsia.

Me recordo da Micaela perguntar qual era a chance do exame vir negativo e a Dra. Sandra responder: só por um milagre. Aí a Micaela desabou e entrou em desespero. Eu ainda fiquei sem entender o que estava acontecendo. Eu trocaria de lugar com ela. Tive que me manter firme ali, minha esposa estava inconsolável.

Entre esse exame e a biópsia tivemos que aguardar, pois ela precisava passar pela ginecologista. O pedido do exame não poderia ser feito pela Dra. Sandra que acabara de nos atender. Eu não me recordo de termos feito uma consulta na ginecologista ou somente ter pego o pedido do exame.

No dia da biópsia teríamos um complicador, pois a Micaela sempre teve fobia de agulha. Além da ansiedade natural e expectativa pelo exames, tínhamos mais esse problema. E para fazer o exame tivemos que sedá-la. Eu fiquei ao lado dela. Eu me lembro do barulho que fazia o aparelho da biópsia.

Naquele momento já estávamos cientes que havia algo e também perdidos, sem saber qual seria o próximo passo, qual o médico que deveríamos procurar. Tinhamos muitas dúvidas e pedimos ajuda à Dra. Sandra para nos indicar um médico. Ela saiu e voltou com o nome de dois médicos e um deles era o Dr. César Cabello. Ela havia, inclusive, marcado a consulta para a sexta-feira seguinte.

Fomos para a consulta na sexta-feira. Me recordo de ficarmos aguardando na recepção e, sem muito o que dizer, ficamos de mãos dadas. Não me recordo de detalhes. Fomos chamados e logo que entramos começamos a conversar e o Dr. César estava com a pasta do resultado na mesa. Falávamos de qualquer coisa e, em um determinado momento, a Micaela perguntou sobre o resultado, se tinha saído algo. Ele então respondeu: “Nós temos um tumor. Temos um tumor sim”. A Micaela desabou. Me lembro exatamente dela abaixar a cabeça na mesa e chorar. Depois de se acalmar, ela levantou a cabeça e, no momento que escrevo, acredito que foi ali que ela decidiu encarar de frente. Ela levantou e perguntou qual seria o próximo passo.

Eu fiquei o tempo todo tentando racionalizar, imaginando o que tería que fazer. E ao achar que tinha o controle perguntei quanto tempo teríamos. Eu não consegui terminar a frase. Chorei. Eu chorei na frente dela. Eu queria parar, não queria que ela me visse chorando. Queria estar forte ao lado dela para ajudá-la, mas não aguentei. Aí ela me consolou e falou que ia dar tudo certo.

Conversamos sobre os próximos passos. Dr César nos indicou a Dra Suzana, que seria a oncologista da Micaela e que depois nos indicou a Adriana, enfermeira que cuidou da Micaela.

Terminada a consulta, nossa preocupação passou a ser as crianças e queríamos ir para casa para ver e falar com nossos filhos.

MARIA CLARA E FRANCISCO

A primeira coisa que fizemos ao chegar em casa foi contar para a Maria Clara. A Micaela chegou, abaixou e falou olhando nos olhos da Maria Clara que a mamãe estava doente, que a mamãe precisaria se ausentar para tomar um remédio para matar os bichinhos que estavam dentro da mamãe. E a Maria riu quando a Micaela contou que iria ficar careca.

Acho que só não desabamos por causa deles. O Francisco é muito pequeno, não entende, é provável que nem se lembre da mãe, mas, e a Maria? Foi inevitável pensar como eu iria criar os dois sozinhos. Entrei em desespero. Não sabia o que fazer. Não sabia como ajudar a minha esposa. Fiquei imaginando o futuro. E aí respiramos e voltamos à realidade, seguindo um dia de cada vez.

Tentamos manter a rotina deles e alterá-la o mínimo possível e acho que conseguimos, em parte. Por mais difícil que seja imaginar, mas não foi triste.  As crianças participaram de tudo na medida do possível e me recordo da festa que foi cortar o cabelo da mamãe.

ACEITAÇÃO

“Aceitação,
Não é destituir-se da vontade própria .
Mas sim construir nova rota.
A partir dos fatos
Que nos conclamam
A progressão do Espírito.”

M. Estela.

Embora o quadro que se apresentava fosse muito grave, me recusei a aceitar o que o destino nos reservara. Iríamos passar por isso juntos e raspei o cabelo (grande coisa…). Queria que ela soubesse que eu estaria com ela em todos os momentos. Fui em todas as consultas, quimioterapias, exames de sangue e outros tantos exames.

Foto tirada um dia depois do diagnóstico.

Buscamos todos os tratamentos possíveis e que estavam ao nosso alcance. Se escolhemos passar por isso em algum momento então tudo bem, mas não iríamos esperar sentados. Lutamos em pé o tempo todo. Ao mesmo tempo que o tumor foi agressivo desde o início, a Micaela foi valente o tempo todo e minha única alternativa era estar ao lado dela.

REDIMENSIONE OS SEUS PROBLEMAS

Redimensionar os nossos problemas, sem dúvida, foi um dos maiores aprendizados que eu e a Micaela tivemos nestes dois últimos anos. Foi um exercício diário e quase uma convicção de não perdermos mais tempo.

Proponho um exercício para redimensionar os problemas e perceber o tamanho real deles!

Pense em seus problemas atualmente. Tome nota dos 5 maiores problemas que você enfrenta atualmente. Depois de você escrever tudo isso, pense que a morte chegará para você. Agora olhe de novo para os problemas e veja se são tão grandes assim.

Você não precisa estar doente para ter noção de prioridade … basta você pensar sobre isso de uma maneira honesta.

NÃO SUBESTIME O PODER DA VULNERABILIDADE

Quando admitimos que precisamos de ajuda e nos mostramos vulneráveis, há uma oportunidade imensa de criarmos uma conexão muito crua, poderosa, sem os subterfúgios e armadilhas de tentarmos parecer maiores ou mais fortes do que realmente somos.

Ao pedir ajuda, criamos também a oportunidade para que o outro exerça a generosidade e talvez desperte algo que ele sequer imaginasse que existia dentro dele.

Se tudo der certo, duas pessoas saem felizes da situação. Você, que conseguiu companhia, criou um vínculo e teve ajuda prática com alguma questão e a outra pessoa, que pôde ajudar.

Durante o tratamento da Micaela nos deparamos com diversas situações para as quais não estávamos preparados ou não havíamos nos planejado, desde situações complexas com relação direta com o tratamento até as tarefas do dia a dia, como buscar a Maria Clara na na escola. Muitas destas atividades sempre foram da Micaela, mas ela não podia realizar com frequência.

Tivemos que tomar decisões difíceis (principalmente a Micaela) e invariavelmente precisávamos abrir mão de alguma coisa.

Em muitas destas situações nos vimos vulneráveis e impotentes sem saber por onde começar. Mas, desde o início do tratamento, recebemos muita ajuda que chegaram das mais diversas formas.

Diversas mensagens de apoio, preces e orações das mais diversas religiões, apoio incondicional da família, um abraço, amigos que levaram Micaela para o tratamento em outra cidade, um livro sobre alimentação, flores, lenços, indicações de tratamentos, um bolinho deixado na portaria com um bilhete carinhoso, uma marmita feita com todo carinho no dia em que Micaela tomava o remédio e precisava descansar, uma carona para escola, congelados para o final de semana, uma amiga que planejou tudo e levou-a para uma consulta em outra cidade, uma festa de aniversário surpresa, tratamentos alternativos como a Yoga, uma prece dos amigos enquanto faziam o Caminho de Santiago em um ano que eu planejava trilhar o caminho, a visita médica em casa, as enfermeiras que sentiam na pele e empaticamente vivenciavam tudo com a gente!

São tantas demonstrações de carinho e amor que fica difícil enumerarmos todas aqui, porém cada uma fez a diferença em nossa vida!

Então, não seja como eu. Experimente pedir ajuda! E, principalmente não deixe de ajudar, nunca!!!

Antes de mais nada preciso deixar clara a minha crença e certeza na pluralidade das vidas. Na crença que a vida não se resume somente a esta vida que estamos vivenciando, que já vivemos anteriormente ora como amigos ou como inimigos talvez.

Creio que somos herdeiros de nós mesmos. Não posso conceber a nossa existência por um capricho de uma força maligna que nos deu recursos preciosos, mas que construiu um corpo que será usado para espalhar aflições ou receber enfermidades.

Dito isso acrescento que temos que respeitar todas as formas de crer – ou não – em Deus.

Recebemos preces e orações das mais diversas religiões e crenças. Todas as manifestações foram recheadas de amor e carinho. O amor é maior do que qualquer crença.

Nossa relação com a fé ganhou outra dimensão. Passamos por um processo intenso de estudo e aprendizado e essa busca começou alguns meses antes mesmo do diagnóstico. Passamos por diversos lugares, tratamentos, cirurgias espirituais e tivemos experiências marcantes que transformaram a nossa relação e a nossa vida.

Na experiência da perda, é possível que finalmente entendamos quem é Deus para nós; o que é sagrado para nós.

O QUE EU APRENDI COM A MICAELA (NÃO COM A DOENÇA)

“‘Eu tive uma namorada que via errado. O que ela
via não era uma garça na beira do rio. O que ela
via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava
as normas. Dizia que seu avesso era mais visível
do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar
de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez
que tinha encontros diários com suas contradições.” (Manuel de Barros)

Ela sempre via as coisas de um jeito que a maioria não se permite ver.

Eu devo a ela e aos meus filhos a parte mais legal da minha personalidade hoje, aprendi com ela sobre respeitar as pessoas, amar as pessoas, ser gentil com as pessoas, entender que estamos aqui por pouco tempo, aproveitar melhor o dia, valorizar aonde você está.

Aprendi e tenho aprendido muito por ter compartilhado minha vida com a Micaela. De cara, preciso dizer que saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida de quem amamos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com nosso tempo, nosso movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.

Passar por uma perda pode nos dar a percepção do tamanho do amor que fomos capazes de sentir por alguém, de como essa pessoas pode ter sido generosa ao esperar nosso tempo de aceitar a morte dela.

A partida da Micaela não levou com ela a história de vida que compartilhamos. Quando a morte acontece, ela só diz respeito ao corpo físico. A Micaela continua sendo minha esposa e mãe dos meus filhos. Tudo que me ensinou, tudo o que me disse, tudo o que vivemos juntos continua vivo em mim.

Eu também quero ver a vida de um jeito diferente, de outra forma, seguir outro caminho, pois a vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é o melhor motivo para buscar um novo olhar para a vida.

Trechos deste texto foram inspirados e adaptados do livro “A morte é um dia que vale a pena viver” cuja autora é a Dra Ana Claudia Quintana Arantes. Mais informações:  https://goo.gl/LTjn5i

 

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