Quanto tempo temos? Levou um tempo para que conseguisse fazer esta pergunta. Menos de seis meses foi a resposta da equipe médica. A Micaela queria que fosse em casa e sem dor. Mas não foi possível ser assim. Chegamos a ir para casa, mas ela voltou a ter febre e precisamos ir para o hospital, sabendo que ela não iria mais sair.

Ela me pediu para comprar um caderno para escrever para as crianças. Eu comprei, mas não contei pra ninguém. Ela chegou a escrever algumas coisas e esse caderno está bem aqui comigo. No hospital, a Micaela pediu para falar com pessoas específicas. Algumas foram possíveis, outras não.

A Maria e o Francisco foram dois dias antes para verem a mãe. Eles não tinham consciência, mas aquela visita seria a despedida deles. E quando sai com as crianças, nos olhamos, e nos despedimos, assim, pelos olhos, dizendo “está tudo bem”. Mas eu queria mais, queria ter uma última conversa com ela. Não aconteceu a conversa, mas a gente já tinha falado tudo e estava tudo bem.

Na madrugada, me ligaram do hospital. Fui para lá e estava com ela. Era perto da uma da manhã, quando começaram a sedação. Ela teve uma reação, coceira. Eu a ajudei. Depois, ela adormeceu. E foi se desligando. Acompanhei cada suspiro da sua partida. Meu pai estava comigo, meu pai estava perto e isso foi muito bonito. Ter ele ali.

A Micaela teve o diagnóstico de câncer de mama triplo-negativo aos 36 anos. Nossa filha, Maria, estava com cinco anos e nosso filho, Francisco, com 10 meses. Quando o médico confirmou que se tratava de um tumor, ela desabou, chorou e abaixou a cabeça. Logo levantou e disse, “tá, qual o próximo passo?”. Eu não consegui me controlar, chorava, tentando racionalizar tudo. Mas percebi que controle mesmo a gente não tem de nada. Foi ela quem me consolou.

Chegamos em casa e ela conversou com a Maria. Uma conversa olho no olho. A Micaela explicou que estava doente, que precisaria se ausentar em alguns momentos para tomar o remédio que mataria os bichinhos de dentro dela e que iria ficar careca. A Maria deu risada. E nós seguimos dia a dia, passo a passo.

Ainda perdido e sem muito saber o que fazer, decidi raspar a cabeça no dia seguinte ao diagnóstico. Foi o jeito que encontrei para dizer tudo que eu não conseguia. Eu queria que a Micaela soubesse que eu estaria ao lado dela, sempre. E ela foi valente, sempre. Até o fim.

Foram dois anos de tratamento. Dois anos acompanhando cada consulta, cada sessão de quimioterapia, cada exame. Tudo. Lutamos juntos. Eu não estava ali por precisar estar. Eu estava porque queria estar. Acreditamos, tivemos muita fé. A Micaela provocou mudanças em todos nós.

Me lembro da equipe médica, dos profissionais que cuidaram dela, chegando no hospital. Chegaram juntos, parecia ensaiado. Na foto que eles têm com ela, todos sorriem. Um dos médicos disse que precisava ser um médico melhor por causa da Micaela. Ela provocou mudanças mesmo em todos nós. E o que eu aprendi com ela tem a ver com presença. Estar mais presente para as as pessoas que amo, para a vida, em cada instante.

A Micaela tinha escolhido a roupa. Deixou tudo certinho. As crianças não foram ao velório. Ela não queria. Ao voltar para casa, chamei a Maria e contei que a mamãe tinha virado estrelinha. Ela disse: “a mamãe morreu?”. E depois deu um berro e chorou. Choramos juntos. A Maria contou do mesmo jeito para o Francisco e fomos dormir todos juntos. Eu não tinha ideia do dia seguinte. Como seria a partir dali?

O luto não vai passar, a gente aprende a guardar ele num lugarzinho. Mas, às vezes, a gente passa por lá. O luto faz a gente caminhar no deserto e o (re) começo foi doloroso. Com dois filhos pequenos e sem saber o que fazer. Foi preciso me colocar em movimento para acalmar a dor. Hoje, toda minha vida gira em torno deles. Sou pai da Maria e do Francisco. É isto que me sustenta.

O projeto Cartas para Maria, blog que escrevo para compartilhar experiências e para que meus filhos possam ler e saber de tudo no futuro, veio como uma ideia, na época, para fazer a Micaela escrever sobre o que se passava. Foi também uma forma que encontrei de colocar tudo que se passa aqui dentro para fora. Com o tempo, isso começou a chegar em outras pessoas e a gerar uma aproximação entre outras histórias de vida e morte.

A escrita, de uma forma ou de outra, permeou e permeia essa história.

Conheci a Micaela no prédio em que morávamos e o que nos aproximou foi o livro que eu estava lendo na época, “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini. E foi também um livro, o “A morte é um dia que vale a pena viver”, da Ana Cláudia Quintana Arantes, que chegou em casa, pelos Correios, dias após sua partida. A encomenda estava no nome da Micaela, pois ela havia encomendado enquanto estava no hospital. Os livros nos uniram antes e depois.

Aprendi muito com a Micaela e sigo aprendendo para honrar sua vida e sua presença em nossas histórias. Isso é ser uma pessoa eterna.

 

Sobre o projeto Escritas de Passagem (@escritasdepassagem)

MANIFESTO:

Ser palavra para o que não há nome.
Ser texto para o que foge do tempo.
Ser escrita para histórias que precisam ser ditas.
Pois é preciso falar sobre morte em vida.
É preciso dar vida ao vazio do luto
É preciso olhar para o canto que fica em silêncio
E deixar que ele seja ouvido no momento que quiser dizer.
O Escritas de Passagem é esse ouvir e contar
De vidas que ficaram e de vidas que foram
De ausências, de vazios e de recomeços
O Escritas de Passagem é esse instante no texto
Que pode ser compartilhado, abraçado
E diluído em outros instantes comuns.
As histórias de morte para falar da vida, das vidas.

texto por @manas.escritas

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