“E o que é que tem pra dar de errado?”, pensaram quase que ao mesmo tempo quando decidiram ir morar juntos. Ficaram pouco mais de um ano sob o mesmo teto para, enfim, se separarem. “É. Se parar aqui pra pensar, até que tinha bastante coisa pra dar de errado”, ele pensou em silêncio no dia que a ex foi buscar as últimas coisas no apartamento que um dia foi deles, mas que estava só com um integrante tinha umas semanas. Ele desceu para ajudá-la com alguns itens e, na subida de volta, pegou o elevador com a Mica, que ainda não a chamava desse jeito, na verdade não sabia o nome dela e ficou a subida toda olhando para seu reflexo no espelho e pensando como poderia ter morado ali um ano inteiro e só ter reparado na vizinha agora, no fim de tudo. Trocaram o primeiro oi tinha nem dois meses da separação. As trombadas seguintes, na escada ou no corredor do prédio foram assim, meio mornas, meio distantes, um aceno e segue a vida.

Mas o tempo, esse senhor de todas as coisas, o ajudou a estruturar melhor essa relação mal resolvida. Com o passar dos dias, passou a observar mais sua colega de edifício, a reparar melhor em sua figura, no sorriso doce quando o cumprimentava já de saída, a saudável regularidade com que ela frequentava a piscina que ficava de frente para a varanda do apartamento dele. E dessas tardes de sol ele resolveu descer lá também. Levou consigo um livro, para dizer que tinha o que fazer e sentou-se, na esperança de cruzar com ela em algum dos momentos. Mas naquela manhã, só desceu com ele uma senhora, mas uma companhia agradável. O cumprimentou, disse que era mãe de uma moradora. Vendo o livro debaixo do braço dele, puxou conversas sobre leituras e literatura, ela disse que estava lendo uma obra espírita, ele comentou que estava já no final de “O Caçador de Pipas”, do afegão Khaled Hosseini. A senhora desejou-lhe sorte com o fim do livro. Quando ele parou para reparar no caminho dela, viu que sua filha era a Mica, que ele ficou sabendo do nome, Micaela, naquele instante. A senhora apresentou os dois, falou do gosto pela leitura da filha que, por sua vez, ficou curiosa com o livro.

Era a isca.

Ele disse que terminaria de ler a obra naquela mesma tarde, e que deixaria com o porteiro para emprestá-la. Claro que ele não tinha mais cabeça para ler livro algum, mas, mesmo assim, deixou sua incompleta leitura com o porteiro, para entregar para a moça que estava aguardando para ser a próxima na fila. Curiosamente, nos dias seguintes não houve contato algum entre eles. Ele não queria ser, e alguma forma, desagradável em ficar no pé dela e ela não apareceu para falar se pegou o livro e como estava a leitura. Um dia, dois, uma semana inteirinha. Nada. Na semana seguinte, ele desceu na piscina e finalmente ela apareceu. Ela parecia empolgada, comentou que tinha terminado o livro e que o devolveria naquele dia. Perguntou se ele tinha gostado, o que tinha achado do final – aquele que ele não tinha lido. Focado na aproximação, ele foi jogando a conversa para ela se abrir e falar de suas impressões, enquanto ele concordava, fazia caras de certeza quando, na verdade, não fazia ideia do que ela estava falando. Mas o contato havia sido feito. A aproximação estava acontecendo. No final do dia, ela bateu na porta e devolveu o exemplar consumido.Trocaram mais umas amenidades e também o contato um do outro. E foram se falando por mensagem, vendo mais coisas em comum, falando dos filmes que gostavam. Ele arranjava qualquer motivo para uma conversa com ela. Ele ficou sabendo que ela era psicóloga e sua atenção para o assunto mudou. Passaram-se uns dias e ele deixou na portaria, para ela novamente, uma brochura sobre um projeto no trabalho dele que envolvia psicologia e ela ficou contente e curiosa com o programa do conteúdo. Agradeceu rapidamente quando se viram na entrada do prédio, ela saindo e ele chegando e foram parar para se falar com mais calma dias depois, de novo na piscina.

Se encontraram lá de novo e outra vez, sempre com assuntos e interesses partilhados. Já conectado, teve uma vez em que fizeram uma festa infantil no salão de festas, com várias crianças, inclusive o sobrinho dela, que estava visitando a tia e aproveitaram para descer. Vendo ela pegar o elevador com a criança, contou dezesseis minutos e desceu também, com a desculpa de dar oi para o pai do aniversariante e poder ter com ela também. Acabou, nesse dia, fazendo um convite para irem ao cinema juntos, qualquer dia desses, assim, como quem não quer nada, se rolasse, quem sabe, em algum momento. E ela aceitou. Foram ver “Pecados Íntimos” no final de semana e acabou rolando. Acharam engraçados voltarem para casa, que era no mesmo endereço, então não teve alguém deixando alguém para depois ir embora. “Estamos todos em casa”, ele disse ao se despedir.

Os dois chegaram a sair mais uma vez até ele precisar viajar. Era bem no carnaval e ele já tinha se organizado para ver os pais numa cidade do interior de Santa Catarina, um lugar com pouco mais de nove mil habitantes. Mas, justo no feriado da carne, ele ficou ressabiado que poderia passar a impressão de que estava arranjando desculpa para passar as festas sem ela. Para redimir sua culpa, passou os quatro dias mandando toneladas de mensagens para manter território, para mostrar, simbolicamente, que o território dela estava a salvo, mandando fotos em situações roceiras. Assim que voltou, falou com ela e percebeu que estava tudo bem. E saíram juntos mais uma vez. Os pais dele também ficaram sabendo dela, os amigos dele e os amigos dela. Aos poucos, passaram a incluir um ao outro em seus universos, incluíam círculos em comum, estreitaram laços, criavam rotina. Algo muito parecido com um namoro, mas sem ser chamado de namoro. Ele não tinha pressa em dar nomes aos bois, mas sabia que ela indiretamente colocava o assunto na mesa para ver se, em algum momento, conseguiria debater a ideia com ele. Mas a pendência seguia. No dia dos namorados, no meio da tarde, ele realizou que a data poderia ter criado alguma expectativa nela e, no supetão, comprou uma caixa de chocolates que eram os preferidos dela. Em casa, quando entregou o presente, os olhinhos espertos dela brilharam e, depois dos beijos e durante um abraço demorado, ela perguntou: “o que isso significa?”. E da boca dele saiu um “ué, nada” meio bêbado, molenga, completamente intimidado pela inquisição. E, claro, ela murchou nos braços dele e a noite acabou ali. Passou a sentir o incômodo no jeito ela quando esse assunto resvalava os encontros dos dois. Estavam ou não estavam? Era claro para ele que estavam, sim, mas que não precisava ser dito ou discutido, mas sentia que ela necessitava de uma situação mais rotulada que aquela. Até que, numa noite fria, depois de ver uns filmes no em silêncio no sofá, entraram no assunto casamento, de como ela gostava de casamentos e como seria se um dia resolvessem avançar para um casório. Nisso, ela, esperta como era, colocou a pauta de modo irônico: “É, né, mas pra gente se casar precisa primeiro namorar”. E foi a gota d’água. “Você quer que eu me ajoelhe, então?”, ele perguntou aos risos, enquanto um meio que dava pequenos empurradinhas um no outro, daquele jeito “hein?”. E pediu ela em namoro. Tarde da noite.

Ficou sabendo, anos depois, que naquela madrugada, ela ligou escondida pra mãe dela, pra falar que estava finalmente namorando.

O que podia dar errado nessa história? Absolutamente nada.

Foi tudo como precisava ser.

O amor tem seus caminhos para chegar onde chega.

* * *

SOBRE O CARTAS DE AMOR:

Oi gente! Jader falando aqui. =)

“Quem precisa de ficção quando se tem a realidade?”. A gente brinca, no jornalismo, que as invenções da literatura nunca alcançarão a loucura que é a vida real. A gente cria, fantasia e dissimula, mas a realidade, as histórias de fato vividas, dão de dez a zero.

O Cartas de Amor é um projeto que sai do coração. Do olhar, ver e reparar. A gente vai se colocar nesta posição mais atenta para falar de forma genuína, para ouvir mais disponível. Vamos encontrar a faísca e fazer disso, fogo.

Você pode ler mais e conhecer o projeto Cartas de Amor no link abaixo:
Site: https://jaderpires.com.br/cartas-de-amor

SOBRE O AUTOR:

Jader Pires é escritor. Largou a publicidade, a experiência de sete anos em um banco e foi escrever. Começou a ler livros depois dos vinte e teve que correr atrás do tempo perdido. Já lançou três livros: o Ela Prefere as Uvas Verdes e o Do Amor, de contos, e agora, lança o seu primeiro romance, Deserto Negro, já disponível para compra. Siga-o no Instagram! @jaderpires.

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