Toda saudade é a presença
Da ausência de alguém
De algum lugar
De algo enfim
Súbito o não
Toma forma de sim
Como se a escuridão
Se pusesse a luzir
Da própria ausência de luz
O clarão se produz
O sol na solidão
Toda saudade é um capuz
Transparente
Que veda
E ao mesmo tempo
Traz a visão
Do que não se pode ver
Porque se deixou pra trás
Mas que se guardou no coração

“Essa música é um mistério, começando pela definição que ela dá de saudade [remetendo a Guimarães Rosa, para quem a saudade é ‘a presença de quem não está’] como ‘a presença da ausência’. Eu gosto muito em particular nela da imagem da saudade como ‘um capuz transparente, que ao mesmo tempo veda e traz essa visão’. ‘Veda’, para materializar a faculdade da saudade de falar da distância; e ‘traz a visão’ porque ela reivindica para o instante presente o ‘que não se pode ver’: eis a função de duas faces da saudade, de admitir a ausência mas ao mesmo tempo instalar a presença. A propriedade especial da palavra está em substantivar o binômio, a dualidade entre ausência e presença; aí reside o que eu acho expressivo nela. Que a palavra ‘saudade’ tem uma força especial, não há dúvida, mas eu não acho que ela não tem correspondentes em outras línguas; há palavras com a mesma função de ‘saudade’; equivalentes, tentativas de aproximação pelo menos. ‘Saudade’ talvez seja mais bem realizada. O engraçado é que ela não tem etimologicamente nenhuma relação com outra que diga respeito exatamente ao seu significado.”

*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”

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