No hospital, durante sua última internação, você falou do desejo de levar o Francisco para conhecer o mar, lembra? Não chegamos a cogitar a possibilidade. Nós dois sabíamos que não havia mais tempo…

E não houve mesmo…

Você partiu e eu tive de lidar com tanta coisa… decidir e refazer sozinho com os dois a nossa vida. Me perguntei se daria conta. Quer saber? Não tenho dado conta de tudo. Mas, hoje, já consigo lidar um pouco melhor com a nova rotina. Naquele momento, eu não tinha alternativa, teria que mudar a minha vida para estar mais próximo das crianças. Confesso que não achei que seria tão difícil.

Desde então, tem sido um dia de cada vez. Não consigo planejar a longo prazo e, com muito sacrifício, organizo a semana. Você sabe o quanto é difícil para mim não ter controle do dia, da rotina… de tudo…. Eu sei que você está rindo agora, mas pode parar, hoje, eu sei: nunca tive o controle, nunca vou ter!

Me desculpe por demorar todo esse tempo para levar o Francisco para conhecer o mar. Eu quero que saiba que eu não havia esquecido, mas, com as mudanças que a vida nos trouxe, pensar em sair e viajar era algo difícil por diversos motivos.

Mas sabe de uma coisa? Eu acho que foi melhor assim, o tempo passou e as coisas, de certa maneira, ficaram mais leves.

Quero lhe contar como foi.

Nós fomos para o Rio de Janeiro, foram quase sete horas de viagem e, após nos acomodarmos no apartamento, levei o Francisco até a sacada. “Francisco, olha o mar”, disse a ele enquanto colocava-o no chão, me afastei e fiquei logo atrás sentado observando. Houve silêncio por um breve tempo e, em seguida, ele disparou a falar apontando o dedo para tudo de novo que avistava.

O céu azul sem uma nuvem, a areia levemente dourada. O dia estava lindo!

De repente, ele olhou para trás, falando mais alto e com certa agitação. “Papai, é um tubarão.” Olhei com mais atenção, era um barquinho branco, estava distante, não quis discordar e confirmei. “É mesmo, um tubarão branco.” A Maria olhou desconfiada. Pisquei para ela. Então, ela confirmou. “Nossa, é um tubarão.” Conversamos sobre esta espécie de tubarão e outras, sobre as características de cada uma delas. Avistamos outros “barcos”, naquele momento, bem maiores e inconfundíveis.

Estávamos próximos a uma rampa de decolagem de voo livre, a mais antiga do Brasil. O céu, de repente, passou a ser cortado por voos de parapentes e asas delta, que insistiam em desfilar bem na nossa frente, um festival de cores pintando o céu azul.

Eu já disse que o céu estava lindo?

Ficamos, na varanda, conversando enquanto observamos os parapentes e asas deltas. Consegui convencer os dois a esperarem o sol baixar, estava muito quente e decidimos ir à praia somente no final do dia. Mesmo assim, eles quiseram se trocar para ficarem prontos, comemos algo e eles ficaram assistindo desenho para passar o tempo.

Fui até a varanda e o sol parecia ter dado uma trégua. Chamei pelos dois que pularam do sofá e vieram correndo. Filtro solar, baldinho, bola, toalha, mochila, chinelos nos pés e saímos. Um de cada lado e, de mãos dadas, fomos caminhando, pegamos o elevador. A Maria Clara apertou o botão do térreo, olhou para mim, sorriu e os dois conversaram entre eles. Chegamos na rua, ouvimos o barulho do mar, o Francisco pediu colo, atravessamos a rua, caminhamos no calçadão até a rampa de acesso, no meio da rampa, antes de chegar na areia, coloquei ele no chão, recolhendo os chinelos.

Chegamos ao final da rampa, ele pisou na areia fofa, reclamou que estava “quente”. A Maria Clara disse que não estava não e chamou por ele. Os dois começaram a correr um atrás do outro. Fiquei observando, não queria perder nenhum detalhe.

Queria gravar tudo no coração.

Chamei a atenção dos dois, pedi para não ficarem longe, eles fingiram que não ouviam e continuaram brincando. Acelerei o passo, queria ficar à frente deles para registrar tudo, fotografando, mas desisti. Com tanta coisa sendo carregada, não consegui. Fomos nos aproximando da água, escolhemos o lugar onde deixei tudo organizado. Os dois continuaram brincando, naquele momento, distraídos com conchas.

Chamei pelo Francisco e disse que iríamos colocar o pezinho na água. A Maria foi logo na frente e nós dois atrás caminhamos devagar. Ele ficou com receio ao entrar, apontei para a Maria, disse que estava tudo bem. Peguei-o no colo, mostrei a onda tocando meus pés e voltando. Coloquei-o no chão, com os pés já na água, e ficamos esperando as ondas. A primeira delas veio, ele recuou e pulou. Ainda com medo, apertou minha mão. Decidi agachar, segurei-o com duas mãos e esperamos outra onda. Nos divertimos ao sentir a onda bater e respingar nos molhando. A onda voltou, os pezinhos afundaram e rimos. Você precisava ver a carinha dele.

Saímos da água, ficamos por ali onde a areia molhada escondia as conchinhas. Ficamos recolhendo-as enquanto a onda retornava ao mar. Quando outra onda se aproximava, o Francisco voltava correndo.

Ficaria horas vendo ele fazer aquilo.

O sol estava quase se pondo quando as crianças quiseram construir um castelo. Enchemos os baldinhos de água e ficamos conversando sobre quantas torres seriam necessárias para proteger o castelo da maré. Chegamos a fazer um canal para que a água entrasse e desse a volta pelo castelo. Além de duas torres e uma grande muralha na frente. Daí ficamos esperando para ver quanto tempo o castelo resistiria.

Durante a espera, a Maria quis ir até a água. Ficou na beirinha com a água no tornozelo, enquanto o Francisco continuou brincando na areia, cavando para caber toda a água do mar. Imagine, acabou derrubando uma das torres.

Fiquei observando os dois, escutando o barulho do mar, respirei fundo algumas vezes, olhei as crianças, elas estavam felizes, me emocionei. Queria que você as visse.

Queria que você tivesse visto aquele momento. Na verdade, queria que você visse o momento de agora também.

Queria só relatar como foi a experiência do Francisco vendo o mar, mas acabei conversando com você e contando como foi o dia dele, como tem sido com as crianças… Fazia tempo que não conversávamos, já faz um ano…

Eu queria que o tempo tivesse sido mais generoso e que tivéssemos tido mais tempo para que você pudesse estar aqui e ver as crianças.

Mas…

Nosso Francisco conheceu o mar e o tempo está se encarregando de colocar tudo no seu devido lugar.

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