“Olá, pessoal, tudo bem?
Como vocês já sabem, minha esposa morreu.
Pode parecer que faz muito tempo, mas não é assim. A morte e o luto, são atemporais.
Desde a morte da minha esposa não conversamos sobre o que aconteceu e uma distância e barreira foram criadas entre nós. Então resolvi quebrar o silêncio.
Escrevo para contar o que tem acontecido nos últimos anos, visto que não tenho mais respondido no nosso grupo de Whatsapp nem ido a qualquer evento social. Ressaltando que foram poucos os convites recebidos… Alguns precisei recusar, outros eu quis recusar. Abro, aqui, o coração e deixo extravasar a sinceridade.
EU PRECISAVA SENTIR, PRECISAVA DE SILÊNCIO PARA SENTIR O QUE ESTAVA NO CORAÇÃO.
Às vezes, na vida, só o que precisamos é de alguém que acolha nosso silêncio – em silêncio. Mas entendo a dificuldade de vocês em lidar com isso ou saber como agir comigo. Precisei me distanciar e por isso peço desculpas.
Meus amigos, as crianças estão bem, saudáveis e felizes. Meus filhos são lindos, todo pai deve dizer isso, mas meus filhos são especiais e lindos mesmo. Puxaram a mãe, claro.
Quando voltei para casa, após o enterro, eu quis chorar, mas não tive tempo, tinha as crianças e eles precisavam do banho e do jantar. Me recordo de deitar com os dois na minha cama, um de cada lado, e me ver sozinho com eles pela primeira vez. Sinceramente, não me recordo de ter conseguido dormir e, sem conseguir sentir ou dimensionar o que acabara de acontecer, foi como se tivesse tomado uma anestesia.
No dia seguinte, ao me levantar, caminhei até a sala, o sol ainda não havia nascido, me vi em pé, na cozinha, abrindo o armário, sabia que estava ali para pegar a mamadeira do Francisco, mas fiquei olhando paralisado enquanto era atropelado por uma enxurrada de pensamentos: “O que eles vão almoçar?” “Será que têm roupas limpas?” “Será que preciso comprar roupas novas?” A Mi sempre dizia que tinha de comprar, pois estavam crescendo rápido e as roupas não serviam de um dia para outro… E foi assim que me vi “o dono da casa”. Hoje, sei que, naquela manhã, tive que assumir o protagonismo que nunca fora meu.
Me senti sozinho, eu estava sozinho – “a ficha caiu”. Enquanto todos seguiam as suas vidas, eu acionei o botão do super-homem e passei a fazer tudo. Eu precisava, ou melhor, eu achava que precisava dar conta de tudo sozinho.
Passaram-se semanas e meses – e a realidade é que eu sofri, pois eu não admitia, mas precisava de ajuda, porém não conseguia pedir. E qual foi a principal consequência?
Existe a solidão, tive que admitir minha vulnerabilidade, aprender a conviver com ela e, principalmente, a pedir ajuda.
Passei a ocupar o papel de cuidador que, em nossa sociedade, é reconhecido como sendo um papel da mulher. E foram elas, mulheres, que estiveram presentes e me ajudaram naquele período.
Me recordo de procurar por referências masculinas, homens enlutados, pais solo, qualquer homem que tivesse de alguma maneira vivido o que eu estava vivendo. Eu queria me reconhecer em outros homens, ver que existia, apesar de tudo, um caminho a ser percorrido. Alguém que me dissesse que era possível. Mas, em minha busca, tive dificuldade de encontrar grupos de apoio a homens enlutados ou de apoio a homens que são pais.
E, neste primeiro momento, o que eu encontrei? Silêncio! Um grande silêncio.
Por mais um tempo fui sufocando as emoções, palavras e lágrimas embaixo da armadura que já existia e que fui tentando aperfeiçoar, assim como a maioria dos homens faz, creio. Eu precisava ser forte.
No luto com meus filhos eu estava me redescobrindo como pai, pois, de verdade, estava com eles no dia a dia, na hora do banho, na hora de fazer a comida, quando meu filho pedia ajuda para ir ao banheiro, virando a noite medindo a febre, levando e buscando na escola, participando do grupo de mães do Whatsapp, dizendo “não” às vezes ou fazendo o coque do ballet. Mas antes de ser pai, eu sou homem, e assim, eu senti que precisava me redescobrir, também, como homem, como amigo, filho, como ser humano.
Só fui encontrar o primeiro grupo de conversas entre homens dois anos após a partida da Mi. Desde então, participo de rodas reflexivas, que funcionam como uma rede de acolhimento entre homens incomodados com o comportamento a que são condicionados para serem vistos como “homens de verdade”. Também encontrei um projeto de acolhimento a homens enlutados do qual hoje sou voluntário. Depois da dificuldade em encontrar esses espaços entendo que é importante criar e ser esse espaço de acolhimento a outros homens.
E aqui estou, escrevendo esta carta como uma tentativa de encontrar espaço no coração de vocês e abrir espaço aqui para vocês se aproximarem novamente de mim e eu de vocês. Confesso que não sou mais aquele Rafa do passado, mas não me considero um novo homem ou que tenha chegado a um ponto final como se estivesse em uma corrida. Não se trata disso. Me sinto em movimento, questionando diariamente o tipo de pai e homem que quero ser. Gostaria muito de compartilhar as reflexões que tenho feito com vocês.
Ao escrever para vocês, não significa que tenha deixado para trás a morte da Mi e tudo o que vivemos juntos. Quando falamos sobre a Mi aqui em casa, falamos dela no tempo presente. Assim, facilmente me pego dizendo para as crianças: “A mamãe é…”. A Mi continua presente em tudo o que faço, nos filhos que tivemos juntos, no que escrevo, na família que se aproximou, nos homens e familiares que acolho nos projetos voluntários em que estou envolvido e que nunca a conheceram, mas que estão na minha vida porque tive a Mi e porque a perdi.
Eu sinto saudade dela.
Desde a sua partida, tenho vivido uma jornada dupla, tripla. Diminuí a carga de trabalho, ou o que nós homens entendemos como trabalho. Passei a acordar mais cedo e dormir mais tarde. Percebi o quanto a Micaela fazia e o quanto eu, como pai, perdia na relação com ela e com meus filhos. Eu deixava de receber por não estar presente na rotina das pequenas coisas do lar. Passei muito tempo preocupado com o sustento da casa e não percebia o pedaço da vida que estava perdendo. Estava perdendo aos poucos um pedaço importante da minha vida. Essa consciência da perda tem me impulsionado a construir uma nova paternidade. Não é fácil, mas é possível. Tenho criado uma relação com as crianças que eu nem imaginava que poderia ter. No entanto, não estou querendo romantizar a paternidade, longe disso.
Faz tempo que não nos encontramos, eu sumi, mas vocês também sumiram. Sei que a vida é corrida, mas acho que nunca precisei tanto de vocês na vida.
Confesso que sinto falta de apoio dos meus amigos homens. Não sei ao certo como vocês podem me ajudar, só sei que preciso de vocês.
Neste próximo final de semana, as crianças vão passar um tempo na casa de amigos, e vou ficar sozinho em casa. Sei que é o dia do futebol, mas pensei que seria incrível se pelo menos um de vocês pudesse vir aqui em casa me dar uma força. A gente pode, ao menos, conversar enquanto eu lavo a louça ou coloco a roupa na máquina.
Então, se alguém se animar, é só chegar. Bom, já escrevi bastante e tenho que agilizar umas coisas por aqui com as crianças.
Forte abraço e me liguem!”