Pai,

Pela vida afora, não tivemos tantas conversas como gostaríamos. Assim como muitas coisas você não teve a oportunidade de me contar, outras eu nunca te disse.

Hoje compartilho algumas dessas coisas. Talvez, em algum momento, você queira compartilhar também.

A chegada da paternidade me fez refletir sobre a vida e o que queria para a minha filha e, agora, para meu filho.

A Maria Clara, antes mesmo de nascer, me forçou a reavaliar atitudes e como me relaciono com as pessoas ao redor. Consequentemente me senti obrigado a melhorar em diversos aspectos. Em alguns, acho que consegui e, em outros, ainda tenho dificuldades.

Lembra que, logo após o parto da Maria Clara, saí com ela do centro cirúrgico e fui ao encontro de todos da família que aguardavam para conhecê-la? Vi você no final do corredor, me emocionei e, ao caminhar, me recordei do sacrifício que você e minha mãe fizeram para criar quatro filhos homens. Hoje eu sei que não foi fácil.
Naquele momento fiquei com muito medo, minhas referências eram todas masculinas. Como eu conseguiria educar uma menina?

Precisava aprender a brincar de casinha, de boneca, ser mais sensível, me preocupar mais com os outros e aprender a dividir as tarefas de casa.

A Maria Clara me obrigou a mudar, ver tudo mais cor de rosa, enxergar mais heroínas do que heróis e querer um mundo mais justo para ela em que os seus direitos sejam assegurados, ela não seja assediada, ganhe o mesmo que homens e possa ser o que quiser.

Além do medo, também carrego um sentimento de culpa que, às vezes, me consome. A culpa de será que estou fazendo o certo? Isso acontece com você?

Hoje entendo que a disposição de mudar nasceu junto com ela. Mas tenho que confessar que não foi o suficiente. Em seguida vieram as preocupações de ser o provedor da casa e ter que exercer o papel que os outros esperavam de mim ou que a sociedade entende como bem sucedido.

E o tempo passou…

Fui eu que insisti com a Micaela para termos um segundo filho. E sabe de uma coisa? Eu sempre quis ter um Francisco para chamar de meu.

A chegada de um filho me trouxe diversas e novas reflexões de como ser como pai, de como ser como homem..
Precisava me redescobrir como homem para conseguir ensinar a ele a não ceder à pressão que os meninos sofrem para adotar os padrões de masculinidade impostos pela sociedade. Pensei em como essa pressão afetou a construção do meu caráter e personalidade. Não desejo isso para meu filho. Quero ensinar que ele pode chorar, pode falar de suas emoções, não precisa ser bom em tudo.

E o medo que senti quando vi a Maria Clara? Voltou novamente com o Francisco, agora mais intenso e com a necessidade urgente de mudar.

Agora tenho dois filhos, precisava dar conta de tudo. Fui guardando tudo aqui dentro e tive muita dificuldade em tomar a decisão de procurar ajuda.

Gostaria de ter conversado contigo sobre esses medos, minhas dúvidas em relação às crianças, sobre sexo, o homem que eu queria ser, sobre a minha vida em família e tantas outras coisas. Não entendi por muito tempo a razão pela qual não tivemos essas conversas.

Quando finalmente consegui procurar ajuda e tudo parecia começar a melhorar no relacionamento com a minha esposa e as crianças, veio o diagnóstico do câncer.

Você já sabe o fim dessa história mas não toda ela.

Durante o tratamento da doença da Micaela, eu deixei de ajudar e passei a estar mais presente. Passei a valorizar pequenas coisas e gestos, a cuidar dela e dos meus filhos. Nesta nova rotina encontrei amor e carinho e passamos a construir um caminho diferente.

Durante o tratamento pela primeira vez senti que você estava por perto. Continuávamos sem conversar muito, mas naquele momento não precisava. Eu sentia que você estava ali.

Eu poderia citar diversos momentos em que isso aconteceu e tive esta sensação, mas a maior declaração de amor que eu recebi foi quando você fez questão de estar ao meu lado no momento em que ela parou de respirar. Quando ela deu o último suspiro, eu olhei para o lado e você estava lá.
Não precisava dizer “eu te amo”.

Eu finalmente entendi, consegui me colocar no seu lugar, entender seus medos e receios.

Demorei para compreender o que, talvez, fosse óbvio. Aprendemos a ser pais sendo. E esse aprendizado vai seguir até o fim de nossas vidas.

Compartilho contigo agora os mesmos medos e receios. Estamos aprendendo a ser pais juntos.

Hoje, sou obrigado a vivenciar essa jornada dupla, tripla da minha esposa e consigo ver o quanto ela fazia e o quanto eu, como pai, perdia e deixava de receber por não estar presente.

Continuo com medo, às vezes um pouco mais, às vezes um pouco menos, mas a disposição de mudar se renova a cada “bom dia, papai” que recebo das crianças.

Estou reorganizando minha vida, voltei a trabalhar, tenho novas prioridades! Comecei a meditar, fazer terapia, busquei por grupos de homens para discutir e aprender sobre masculinidade e paternidade… Estou aprendendo a dizer não, me reconectando com velhos amigos e criando novas conexões.

Eu quero que saiba que está tudo bem, que ainda temos tempo para as conversas.

Eu lembrei de uma última coisa. Você sabe da minha crença na pluralidade das vidas. Na crença que a vida não se resume somente a esta vida de hoje, que já vivemos outras vidas ora como amigos ou como inimigos, talvez. Creio também que somos herdeiros de nós mesmos.

Dentro desse contexto eu escolhi ser seu filho e, se eu pudesse voltar atrás, ainda escolheria você, eu sempre vou escolher você.

Eu te amo.

Seu filho,

Rafael Stein

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